segunda-feira, 2 de abril de 2012

MEDITAÇÃO E CURA

       A meditação (chamada dhyana em sânscrito e zen em japonês) é o cerne da prática budista. O objetivo da meditação é ajudar o praticante a chegar a uma compreensão profunda da realidade. Esta introspecção tem a capacidade de libertar-nos do medo, da ansiedade e da depressão. Pode produzir compreensão e compaixão, pode elevar a qualidade de vida e trazer liberdade, paz e alegria para nós mesmos e para as pessoas ao nosso redor.
       Sobretudo na última parte do século XX, as pessoas do Ocidente começaram a voltar sua atenção para a meditação. O conforto material do Ocidente não é suficiente para trazer felicidade. Nossas mágoas, nossas preocupações e nossos problemas só podem ser resolvidos mediante uma vida espiritual. O budismo e a prática da meditação estão indicando atualmente a um maior número de pessoas um caminho para responder a estas dificuldades.
        A meditação sentada é a forma mais comum de meditação, mas também podemos praticá-la em outras posições como caminhando, em pé ou deitados. Quando lavamos roupa, cortamos lenha, regamos as plantas ou dirigimos o carro - onde quer que estejamos, o que quer que façamos, seja qual for a posição de nosso corpo, se as energias da mente alerta, da concentração e da introspecção estiverem presentes em nossa mente, em nosso corpo, então estamos praticando a meditação. Não precisamos ir a um templo, a uma igreja ou a um centro de meditação para meditar. Viver em sociedade, ir ao trabalho todo dia, cuidar de nossa família também são oportunidades de praticarmos a meditação. A meditação tem o efeito de nutrir e curar o corpo e a mente. E devolve ao praticante e às pessoas que o cercam a alegria de viver. (...)
        A meditação é especialmente indicada para nos ajudar naquilo que o budismo chama de nós interiores e de complexos de identidade. Esses grilhões nos impedem de estar conscientes no momento atual.
        Os nós interiores são um conjunto de ilusões, repressões, medos e ansiedades que se fixaram nas profundezas de nossa consciência. Eles são capazes de nos constranger e nos levar a fazer, dizer e pensar coisas que na realidade não queremos fazer, dizer ou pensar. Os nós interiores são plantados e alimentados por nossa ausência da mente alerta durante a vida de todo dia. Os dez nós interiores principais são: ganância, ódio, ignorância, vaidade, desconfiança, fixação no corpo como se fosse o eu, pontos de vista extremados e preconceitos, apego a ritos e rituais, ânsia de imortalidade, desejo ardente de manter as coisas exatamente como são. Nossa saúde e nossa felicidade dependem em grande parte de nossa habilidade de transformar esses dez grilhões.
        A mente alerta tem a capacidade de reconhecer os nós interiores quando eles aparecem em nossa consciência. Esses nós interiores se formaram no passado, às vezes foram energias habituais a nós transmitidas por nossos pais e avós. Não precisamos voltar ao passado e cavar nas lembranças, como se faz na psicologia, para descobrir as raízes dessas partes turvas e emaranhadas de nossa mente. A energia da mente alerta é capaz de reconhecer as formações interiores quando elas se manifestam e olhar profundamente para dentro delas, de modo que podemos ver as raízes desses nós emaranhados.
        A prática da meditação nos ajuda a ver a interconexão e a interdependência de tudo o que existe. Não há fenômeno, seja ele humano ou material, que possa aparecer por si só e durar por si só. O fato é que uma coisa depende da outra para surgir e durar. Esta é a introspecção da interdependência, às vezes chamada também de inter-ser ou não-eu. Não-eu significa que não há uma entidade permanente separada. Todas as coisas estão em constante mutação. Pai e filho, por exemplo, não são duas realidades separadas. O pai existe no filho, e o filho existe no pai. O filho é a continuação do pai no futuro, e o pai é a continuação do filho no passado da fonte. A felicidade do filho está ligada à felicidade do pai. Se o pai não é feliz, a felicidade do filho não pode ser perfeita. A natureza de todas as coisas é não-eu. Não' há um eu separado e independente.
          No âmbito da psicoterapia, a baixa auto-estima é considerada doença. Na prática da mente alerta, tanto a baixa quanto a alta auto-estima e também a necessidade de julgar-se exatamente igual às outras pessoas também são consideradas doenças ou, como dizemos no budismo, complexos. Todos esses três complexos se baseiam na idéia de um eu separado. Baseiam-se todos no orgulho: orgulho de ser melhor, orgulho de ser pior e orgulho de ser igual. O sofrimento que nasce da raiva, da inveja, do ódio e da vergonha só pode ser completamente transformado quando chegamos à introspecção do não-eu. Este é o fundamento da prática da cura na meditação.
         O mestre zen Thuong Chieu, do Vietnã do século XI, disse que, se conhecêssemos o caminho das atividades da mente, a prática da meditação seria fácil. A escola de budismo da Consciência Somente (Consciousness Only) fala de oito espécies de consciência: as consciências dos cinco sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato); consciência da mente; manas (consciência da identidade) e depósito de consciência.
         Manas é a energia ligada à idéia de que existe um eu separado, independente e duradouro, oposto àquelas coisas que não são o eu. A consciência alaya, ou depósito de consciência, é semelhante a um jardim que contém todo tipo de sementes; e a consciência da mente é semelhante ao jardineiro. Quando praticamos a meditação, a consciência da mente está trabalhando, mas o depósito de consciência também está trabalhando secretamente dia e noite. A mente inconsciente da psicologia ocidental é apenas uma parte do depósito de consciência. Se conseguirmos reconhecer e transformar os nós interiores que estão no fundo de nossa consciência, isto não levará à liberdade e à cura. Isto se chama transformação na base (asrayaparavritti). Significa a transformação que ocorre justamente na subestrutura da consciência.
        Quando nossos desejos, medos e sentimentos de indignação são reprimidos, ficam quais sementes que não recebem o oxigênio nem a água de que precisam para crescer e se transformar em algo belo; e podemos experimentar, tanto no corpo como na alma, sintomas que se originam desse bloqueio. Apesar dessas formações mentais terem sido reprimidas, ainda têm a função de nos prender e dirigir, tornando-se assim nós interiores muito fortes. Temos o hábito de virar-lhes as costas, agindo como se elas não existissem, e é por isso que elas não têm oportunidade de emergir e aparecer em nossa consciência mental. Procuramos esquecer, consumindo mais coisas. Não queremos encarar esses sentimentos de dor e de abatimento. Queremos preencher a área da consciência mental de modo que o espaço todo seja ocupado e os sentimentos de pesar que estão no fundo não encontrem lugar para se manifestar. Assistimos aos programas de televisão, ouvimos rádio, folheamos livros, lemos jornais, conversamos, jogamos cartas e bebemos bebidas alcoólicas, tudo para esquecer.
         Quando nosso sangue já não pode circular, aparecem sintomas de doenças em nosso corpo. Da mesma forma, quando as formações mentais são reprimidas e não podem circular, começam a aparecer sintomas de doenças físicas e mentais. Precisamos saber como parar com a repressão, para que as formações mentais de desejo, medo, indignação, etc. tenham oportunidade de se manifestar, ser reconhecidas e transformadas. Cultivar a energia da mente alerta através da meditação pode ajudar-nos a fazer isso. Praticar a mente alerta através da prática diária da meditação vai ajudar-nos a reconhecer, acolher e transformar nossos sentimentos de sofrimento.
        Quando reconhecemos e acolhemos essas formações mentais, em vez de reprimi-las, sua energia negativa diminui um pouco. Contudo, meditar sobre essas formações mentais por cinco ou dez minutos pode ajudar. Na próxima vez que surgirem, serão novamente reconhecidas e acolhidas e voltarão ao depósito de consciência. Se permanecermos nesta prática, não mais temeremos nossas formações mentais negativas, não mais as empurraremos para baixo ou as reprimiremos como fizemos até agora.
         A boa circulação em nossa mente pode ser restabelecida e as complicações psicológicas que causam bloqueios no corpo podem desaparecer aos poucos.
         A mente alerta é sobretudo a capacidade de simplesmente reconhecer a presença de um objeto sem tomar partido, sem julgar, sem cobiçar e sem desprezar este objeto. Por exemplo, suponhamos que exista um lugar dolorido em nosso corpo. Com a mente alerta, nós simplesmente reconhecemos esta dor. Isto pode ser um tipo de oração bem diferente daquele a que você está acostumado, mas sentar em meditação e estar consciente desta dor, isto também é oração. Com a energia da concentração e da introspecção, somos capazes de ver e entender a importância dessa dor, o verdadeiro motivo por que surgiu e a maneira como seremos capazes de curá-la, com base na compreensão que provém da mente alerta e da concentração. Se tivermos ansiedade demais, se estivermos imaginando sempre coisas, esta ansiedade e estas imaginações vão trazer estresse à nossa mente, e a dor aumentará. Não é câncer, mas nós imaginamos que é câncer, e nós nos preocupamos e lamentamos até não mais conseguir comer nem dormir. A dor redobra e pode levar a uma situação mais grave.
          Em um sutra, o Buda dá o exemplo de duas flechas. Se uma segunda flecha é lançada para dentro da ferida causada pela primeira flecha, a dor não será apenas dobrada, mas dez vezes maior. Não deveríamos deixar que uma segunda ou terceira flechas chegassem e nos ferissem ainda mais por causa de nossa imaginação e de nossas preocupações.
          Quando perseguimos os objetos do desejo dos nossos sentidos como dinheiro, fama, poder e sexo, não estamos em condições de produzir autêntica felicidade. Ao contrário, criamos muito sofrimento para nós e para os outros. Os seres humanos estão repletos de desejos. Dia e noite correm atrás desses desejos e, por isso, não são livres. Se não forem livres, não se sentem à vontade e não experimentam a felicidade. Se tivermos poucos desejos, ficamos satisfeitos com uma vida simples e saudável, com viver profundamente cada instante da vida diária, com amar e cuidar de nossos entes queridos. Este é o segredo da verdadeira felicidade. Na nossa sociedade atual, muitíssimas pessoas procuram a felicidade na satisfação dos desejos dos sentidos. Aumentou em muito o sofrimento e o desespero.
           O sutra da Floresta fala do desejo como de uma armadilha. Se formos pegos na armadilha do desejo, vamos lamentar e perder toda nossa liberdade, e não podemos ter verdadeira felicidade. O medo e a ansiedade também geram sofrimento. Se tivermos suficiente compreensão para aceitar uma vida simples e estar satisfeitos com o que temos, não nos precisamos preocupar mais nem temer nada. É só porque achamos que amanhã podemos perder nosso emprego e não receber o salário mensal que vivemos em constante nervosismo e ansiedade. Por isso, a única saída para nossa civilização é consumir pouco e produzir mais felicidade.
(Do livro “A energia da oração” – Thich Nhat Hanh)

quinta-feira, 8 de março de 2012

Outro Caminho


Essas mulheres são heroínas. meios de comunicação no mundo que prejudica as mulheres jovens (e homens). Podemos oferecer às mulheres jovens e homens jovens, uma outra visão, um outro modelo, outra maneira de ser?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Entrevista com Thich Nhat Hanh para a Revista Shambala Sun de janeiro de 2012.

Revista: É muito doloroso ver alguém que amamos enfrentando sérias dificuldades, como doença mental, transtorno do estresse pós-traumático, ou vícios. Às vezes os problemas parecem tão grandes que não nos sentimos capazes de ajudar. Acabamos tendo vontade de nos afastar dessas pessoas e de seus problemas. Outras vezes, tentamos ajudá-las e depois nos sentimos consumidos por suas dificuldades. O que fazer para ajudar em situações difíceis assim sem ficarmos saturados?

Thich Nhat Hanh: SE VOCÊ SE SENTE SOBRECARREGADO, é porque está se esforçando demais. Esse tipo de energia não ajuda o outro e não o ajuda também. Não fique ansioso demais, querendo ajudar imediatamente. Há duas coisas diferentes: ser e fazer. Não pense muito no que fazer – seja primeiro. Seja a paz. Seja a alegria. Seja a felicidade. E, só depois disso, faça a alegria, faça a felicidade – com base no ser. Primeiro, você precisa se concentrar na prática do ser/estar. Estar cheio de vida, estar em paz. Estar atento. Ser generoso. Ser compassivo. Esta é a base da prática. É como se a outra pessoa estivesse sentada ao pé de uma árvore. A árvore não faz nada, mas está cheia de energia, está viva. Se você ficar como essa árvore, emanando ondas cheias de vida, ajudará a acalmar o sofrimento do outro. Sua presença deve ser agradável, calma, e você deve estar presente para ajudar essa pessoa. Isso, por si só, já é muito. Quando as crianças gostam de vir e sentar perto de você, não é porque você tem um montão de biscoitos para distribuir, mas porque é gostoso ficar ao seu lado, é revigorante. Portanto, sente-se perto de alguém que está sofrendo e faça o melhor para ser você mesmo – agradável, atento, cheio de vida.

Revista: Se eu estiver sentindo uma emoção muito difícil - como raiva ou tristeza profunda - e tentar me concentrar em minha respiração, não estaria evitando minhas emoções?

Thich Nhat Hanh: As pessoas tendem a se perder em fortes emoções e ficam sobrecarregadas. Esta não é a forma de lidar com as emoções, pois quando isso acontece você se torna vítima da emoção. Para não se tornar vítima, respire, mantenha a calma e terá o insight de que uma emoção é apenas uma emoção, nada mais do que isso. Este insight é muito importante, pois a partir dele você não sentirá mais medo. Estará calmo, sem tentar fugir, e poderá lidar melhor com a emoção. Sua respiração é você, e você precisa formar uma aliança com sua respiração para ser mais você, para ser mais forte. Isso lhe permitirá lidar melhor com sua emoção. Não tente se esquecer de suas emoções: em vez disso, tente ser mais você mesmo, tornando-se suficientemente sólido para lidar com elas.

Revista: Foi emocionante ver tantas crianças no retiro.

Thich Nhat Hanh: Eu me sinto muito bem com crianças. Nunca me separei da geração mais jovem. Sejam monásticos ou leigos, a comunicação está sempre "ligada" com a geração mais jovem. Esse é um dos elementos da minha felicidade. Algumas jovens mães trazem seus bebês para a sala de meditação porque não querem perder a palestra do dharma. Isso nutre todo mundo. Os bebês não sabem o que está acontecendo, mas sentem a atmosfera de paz. Essa energia de paz é algo raro na sociedade – é muito raro encontrar mil e quinhentas pessoas sentadas, gerando plena consciência e paz. Se você oferece às crianças um gostinho de paz e amor, mesmo que sejam muito pequenas e não saibam falar ainda, não significa que não sintam. Imagine uma jovem mãe amamentando seu bebê durante o retiro. Ela está escutando o dharma, está consumindo o dharma e o bebê está consumindo o leite e o dharma ao mesmo tempo. Isso é lindo. Mais tarde, quando as crianças se depararem com a crueldade do mundo, lembrarão que em algum momento tiveram a oportunidade de encontrar a energia da paz. Quando a sangha, uma comunidade budista, se reúne para praticar, pode gerar um tipo de energia pacífica e os jovens podem vivenciá-la e começar a plantar sementes para o futuro. O Budismo Engajado tenta aplicar essa energia de paz em diversos contextos. A respiração em plena consciência pode ser praticada nas escolas, hospitais, prefeituras, até no Congresso.

Revista: Viver no momento presente e divertir-se com a mídia são aspectos conflitantes? É possível estar em plena consciência e desfrutar da internet, da TV, de filmes e livros?

Thich Nhat Hanh: Há bons livros e filmes por aí. Tudo bem, é bom desfrutar deles. No entanto, às vezes a qualidade do filme ou do livro não é nada boa e, mesmo assim, você não deixa de assistir ou ler porque, se parar, terá que voltar para o sofrimento que está dentro de você. Esta é a prática de muitas pessoas em nossa sociedade. Muitas pessoas não conseguem ficar com si mesmas. Sentem dor, tristeza, preocupações internas e lêem, vêem filmes ou escutam música para encobrir tudo, para fugirem de si mesmas. Consumir mídia dessa forma é simplesmente uma fuga e não tem um efeito duradouro. Você pode se esquecer do sofrimento por um tempo, mas no final terá que voltar para dentro de si. O Buda recomendou que devemos nos esforçar para não fugirmos de nós mesmos. Em vez disso, devemos aprender a nos cuidar e a transformar nosso sofrimento.

Revista: O que você diria a alguém que acha a meditação sentada dolorosa, difícil e que luta para praticar?

Thich Nhat Hanh:Eu diria para parar.

Revista: Verdade?

Thich Nhat Hanh: Sim, sim. Se você não acha agradável, então não pratique meditação sentada. Você precisa aprender o espírito correto do sentar. Se você tiver que se esforçar muito ao sentar, ficará tenso e isso produzirá dor em todo o corpo. Sentar deve ser algo agradável. Quando você liga a TV na sala da sua casa, pode ficar lá horas a fio, sem sofrer. Mas, ao sentar para meditar, você sofre. Por quê? Porque você precisa lutar. Você quer ter êxito na meditação, então acaba brigando. Ao assistir TV, você não luta. É preciso aprender a sentar sem brigar. Se você souber se sentar dessa forma, a meditação será muito agradável. Em uma das visitas de Nelson Mandela à França, um jornalista lhe perguntou o que ele mais gostava de fazer. Ele respondeu que, por estar sempre ocupado, o que ele mais gostava de fazer era simplesmente sentar e não fazer nada. Porque sentar e não fazer nada é um prazer – restaura as energias. É por isso que o Buda fala de sentar-se em uma flor de lótus. Quando você se senta para meditar, deve se sentir leve, cheio de vida, livre. E, se não sentir isso, a meditação sentada se tornará um trabalho forçado. Às vezes não dormimos o suficiente ou estamos resfriados, algo assim. Neste caso, talvez a meditação sentada não seja tão agradável como você gostaria. Mas se você estiver normal, é sempre possível sentir o prazer de sentar. O problema não é sentar ou não sentar, mas como sentar. Como sentar para que você possa se beneficiar ao máximo – caso contrário, estará perdendo tempo.

Revista: Você enfatiza muito o “desfrutar” – desfrutar da respiração, da meditação sentada, do caminhar, da vida como um todo – você destaca isso muito mais do que outros mestres budistas.

Thich Nhat Hanh: Nos ensinamentos do Buda, a tranqüilidade e a alegria são elementos de iluminação. Já há muito sofrimento na vida. Por que sofrer ainda mais ao praticar o Budismo? Você pratica o Budismo para sofrer menos, certo? O Buda é uma pessoa feliz. Ao se sentar, o Buda senta-se feliz. Ao caminhar, o Buda caminha feliz. Por que vou querer fazer diferente do Buda? Talvez as pessoas sintam medo do que os outros possam dizer: “Você não é um praticante sério. Você sorri, você ri, você se diverte. Para praticar com seriedade você precisa ser severo, ficar muito sério.” Talvez muita gente que queira receber mais doações aja dessa forma – para dar a impressão de que pratica mais seriamente do que outros. Pense como seria passar uma noite inteira meditando. Você não tem permissão para descansar e acha que isso é prática intensiva, mas sofre a noite inteira e toma café para conseguir ficar acordado. Isso não faz sentido. É a qualidade da meditação sentada que poderá ajudá-lo a se transformar, e não ficar sentado muito tempo e sofrendo com isso. A meditação sentada e caminhando foram feitas para serem desfrutadas e para nos permitirem olhar profundamente e desenvolver insights. Esses insights poderão nos libertar do medo, da raiva e do desespero.

Revista: Gostei muito da meditação caminhando ao ar livre que fizemos neste retiro.

Thich Nhat Hanh: Em geral, na tradição budista, você se senta, depois se levanta, caminha lentamente na sala de meditação e depois se senta de novo. Não fazemos assim aqui. Em vez disso, caminhamos ao ar livre. Essa prática ajuda muito, pois você pode aplicá-la na vida diária. Você caminha normalmente – não excessivamente devagar – assim as pessoas nem percebem que você está praticando e vêem isso como algo normal. E, ao voltar para casa, ou ao andar do estacionamento para o escritório, você pode desfrutar desse caminhar também. A base da prática consiste em gostar do que você está fazendo – gostar de caminhar, de sentar, de se alimentar e tomar banho. É possível desfrutar de tudo isso, mas nossa sociedade está organizada de tal forma que não temos tempo para desfrutar. Temos que fazer tudo rápido demais.

Revista: Na sua opinião, o que faz com que uma pessoa seja budista?

Thich Nhat Hanh: Uma pessoa pode não ser chamada de budista, mas pode ser mais budista que um budista. O budismo é composto por plena consciência, concentração e insight. Se você tiver todos eles, você é budista. Se não tiver, não é budista. Se você olha para uma pessoa e vê que ela tem plena consciência, compaixão, é compreensiva e tem insight, então saberá que ela é budista. Pode até ser um monástico mas, se não tiver essas energias e qualidades, terá a aparência de budista, mas não o conteúdo de um budista.

Revista: Existe alguma cerimônia para se tornar budista?

Thich Nhat Hanh: Não, não é através de uma cerimônia que alguém se torna budista. É através do compromisso com a prática. Os budistas se apegam a muitos rituais e cerimônias, mas o Buda não gosta disso. Nos sutras, principalmente no ensinamento dado pelo Buda logo após sua iluminação, ele disse que devemos nos libertar de rituais. Você não se ilumina nem se liberta por fazer rituais, mas as pessoas acabaram tornando o Budismo excessivamente ritualístico. Não estamos sendo muito bonzinhos com o Buda ao agirmos dessa forma.

Revista: É preciso acreditar em reencarnação para ser budista?

Thich Nhat Hanh: Reencarnação significa que há uma alma que sai do seu corpo e entra em outro corpo. Essa é uma idéia muito popular e muito errônea da continuação no Budismo. Se você acredita que existe uma alma, um self que habita um corpo e que se vai quando o corpo se desintegra e assume outra forma, isso não é budismo. Ao olhar para uma pessoa, você vê cinco skandhas, ou elementos: forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Não há alma, não há self fora desses cinco, portanto quando os cinco elementos se dissolvem, o karma, as ações que você fez ao longo da vida são sua continuação. O que você fez ou pensou ainda continua existindo como energia. Você não precisa de uma alma, ou de um self para continuar. É como uma nuvem. Mesmo quando a nuvem não está ali, ela sempre continua existindo como neve ou chuva. A nuvem não precisa ter alma para ter continuidade. Não há início nem fim. Você não precisa esperar até que este corpo se dissolva totalmente para ter continuidade – você continua a cada momento. Vamos supor que eu transmita minha energia a centenas de pessoas; essas pessoas serão minha continuação. Se você olhar para elas, poderá me ver nelas. Se você acha que sou isso [Thay aponta para si], então você não me viu. Mas se você me vir em minhas palavras e minhas ações, verá que elas são minha continuação. Ao olhar para meus discípulos, meus alunos, meus livros e meus amigos, você vê minha continuação. Nunca morrerei. Este corpo se dissolverá, mas isso não significa que morrerei. Continuarei, para sempre. E isso é verdade para todos nós. Você é mais do que este corpo porque os cinco skandhas estão sempre produzindo energia. Isto se chama karma ou ação. No entanto, não há ator – você não precisa de um ator. A ação já é suficiente. Isto pode ser entendido em termos de física quântica. Massa e energia, e força e matéria – não são duas coisas separadas. São a mesma coisa.

Revista: O que fazer com o grau de materialismo em nossa cultura?

Thich Nhat Hanh: Podemos organizar um ambiente onde as pessoas vivam felizes, com simplicidade, e convidar outras para vir e observar. É a única coisa que as convencerá a abandonar sua idéia materialista de felicidade. Acham que serão felizes somente quando tiverem muito para consumir, mas muitas pessoas são muito ricas e infelizes. E há aquelas que consomem bem menos e são mais felizes. Precisamos mostrar que viver com simplicidade, com a prática do dharma, pode ser algo que nos realiza muito. As pessoas precisam ver e vivenciar isso primeiro para se convencerem. Em Plum Village, rimos o tempo todo e, ainda assim, nenhum de nós tem uma conta no banco. Ninguém tem um carro particular ou seu próprio celular. Só consumimos alimentos vegetarianos. E não sofremos por não comermos ovos ou carne. Na realidade, isso nos deixa mais felizes, pois sabemos que não estamos consumindo seres vivos e protegemos nosso planeta. Isso traz muita alegria. Temos a sorte de conseguirmos viver assim e de nos alimentarmos dessa forma. Muita gente acha que, se não tiver muito dinheiro, se não conquistar uma alta posição na sociedade, não poderá ser feliz de verdade. É duro desapegar-se de uma crença, mas é possível quando você vê a verdade e percebe que pode ser feliz de outra forma. Ver esta verdade possibilitará o futuro de nossos filhos, portanto acho que nos círculos budistas precisamos nos reorganizar e mostrar às pessoas uma forma de viver feliz com base na compreensão mútua, não no materialismo. Não basta ouvir uma palestra do dharma, pois uma palestra do dharma é só uma palestra. As pessoas precisam ver uma comunidade não-materialista. Somente quando virem as pessoas vivendo assim, poderão se convencer de que isso é possível.

(Entrevista exclusiva feita por Andrea Miller para Revista Shambhala Sun – janeiro de 2012) (Tradução: Denise Kato)