segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Limpando a Esponja



No retiro em Stonehill, Nova Iorque, dois professores de Dharma Seniores falaram sobre a prática do Começar de Novo.

Irmão Phap An: Alguns devem ter ouvido apresentações sobre a prática de Começar de Novo algumas vezes. Se você já esteve em um retiro do Thay, toda vez temos uma apresentação do Começar de Novo.

Desta vez a Sangha pediu a mim e à irmã Dang Nghiem para fazermos essa apresentação. Nos encontramos alguns dias atrás e eu disse que tenho feito essa apresentação há muitos anos, e cada vez eu quero renovar o Começar de Novo! O que deveríamos fazer? Portanto esta noite vocês verão um “bate-bola”! Vamos ver como evolui.

Esta manhã, irmã Anabel mencionou um homem trabalhando na garagem que virou para sua esposa e disse, “Eu sei que você deve estar sofrendo muito. Por favor, me fale sobre isso.” Esta é uma forma de Começar de Novo. Vamos perguntar para Irmã Dang Nghiem o que ela pensa sobre essa prática. O que deveríamos fazer antes de perguntar isso para o nosso amado? Por favor, me diga.

Irmã Dang Nghiem: Eu perguntaria, “A esponja está limpa?” (risos).

Irmão Phap An: O que você quer dizer por “esponja”? Eu não entendi este termo. Por favor, explique! (risos)

Irmã Dang Nghiem: Você sabe como lavar os pratos todos os dias? Nós usamos a esponja para limpar os pratos. Mas com que freqüência pensamos se a esponja está limpa? Como a esponja não está limpa, os pratos não ficarão limpos. Temos muita ansiedade em fazer o Começar de Novo, mas na verdade o primeiro passo é voltar e fazer Começar de Novo com nós mesmos – limpar a esponja.

Na nossa vida, frequentemente, olhamos para novas coisas. Se um par de sapatos está velho, compramos um novo. Se um par de sapatos está novo, mas não gostamos deles, conseguimos um novo. Às vezes fazemos isso com as relações. Podemos conseguir outro namorado ou namorada.

Mas com que freqüência fazemos o Começar de Novo com o que temos, para ver essas coisas frescas, fazê-las novas, vivas e bonitas de novo? Com que freqüência nos ouvimos pensando os mesmos pensamentos e dizendo as mesmas coisas que sabemos que não irão trazer mais entendimento e harmonia? Com que freqüência vemos que nas nossas reações físicas temos padrões previsíveis?

A prática de Começar de Novo começa com uma esponja. Significa que começaremos de novo com nossos pensamentos, nossa fala e nossas ações do corpo. Irmão, como fazemos o Começar de Novo com nossos pensamentos? Acho que é o mais difícil.

Irmão Phap An: Para mim, como um monge, a vida de um praticante é a vida de praticar o Começar de Novo a cada momento de minha vida diária. Esta é a minha prática. O modo que eu pratico Começar de Novo é retornar para minha respiração. Inspirando, sei que estou inspirando. Expirando, sei que estou expirando. Depois, inspirando, tenho consciência do meu corpo inteiro. Expirando, eu relaxo meu corpo. Esta é a minha prática de Começar de Novo com meu corpo físico.

Como seres humanos, frequentemente agimos como uma máquina automática. Assim que o botão é apertado, agimos de determinada forma. Para responder propriamente a qualquer situação, a primeira prática é parar. A consciência da respiração é muito importante; nos ajuda a parar.

Eu costumava ter um temperamento quente. Mas agora eu diminuí minha pressão sanguínea! Demorou muito tempo para praticar parar, mas esse é o treinamento de um monge.

Lembro de uma vez que haveria uma cerimônia em Plum Village. Nesse dia o abade me pediu que pendurasse uma placa de madeira com a caligrafia do Thay e preparasse um altar para os ancestrais. Discutimos entre nós onde pendurá-la, mas o abade não estava lá, ele estava ocupado, talvez ocupado tomando chá. Thay Giac Thanh era o abade, um irmão muito querido, muito gentil, muito Zen.

Portanto penduramos a placa e era quase meio dia quando tiramos a escada, a furadeira, o martelo e as ferramentas. Com sua vara de mestre Zen, o abade veio e andou pela sala de meditação. Ele olhou e disse, “Bem, a placa de madeira com a caligrafia do Thay não está bem ali. O altar deveria estar em outro lugar.” (risos)

Era um treinamento Zen. Quando você for a um monastério e tiver frustração, pense nisto como um treinamento.

Quando ele veio e disse que precisávamos mover a placa, minha raiva veio como loucura. E você sabe o que fiz? Assim que ele saiu, eu deitei no chão, esticado! Deitei no chão e me abracei e comecei a seguir minha respiração. Inspirando, eu sei que estou inspirando! (risos) Expirando, sei que estou expirando. E eu sentia uma raiva tão forte que ela queria me fazer decolar do chão.

Inspirando, eu sei que estou com raiva. Expirando, eu abraço minha raiva com todo o meu amor! Esta é a verdadeira transmissão para vocês essa noite. Quando estiver com raiva de seu amado, mesmo que esteja em uma rua pavimentada, deite-se. É o modo Zen de praticar. Mas tenha certeza que nenhum caminhão esteja passando. (risos)

Por sorte eu fui capaz de deitar e abraçar minha raiva. Depois de cinco ou dez minutos, me senti mais calmo, levantei e saí para procurar um outro irmão que pudesse me ajudar a mover o altar dos ancestrais.

Portanto minha prática de Começar de Novo tem muito a ver com a vida diária. A prática da meditação caminhando é a prática de Começar de Novo. No momento que colocamos nosso pé no chão, consciente do passo, consciente do nosso corpo, consciente do céu azul ou dos nossos sentimentos, esta é uma maravilhosa prática de Começar de Novo.

Minha irmã Dang Nghiem disse, “Esta é a maneira de limpar a esponja.” Em cada um de nós há um bloco de sofrimento. Todos nascemos com um bloco de sofrimento, que foi transmitido para nós pelos nossos ancestrais, o modo como viveram, o modo como agiram, o modo como falaram uns com os outros. Eles se fizeram sofrer. Assim que crescemos, estes blocos de sofrimento crescem como uma bola de neve. Começar de Novo é a prática de reverter o processo da bola de neve e fazer a bola de neve menor. Esta é a base da prática do Começar de Novo. Uma vez que sejamos capazes de ter calma e paz dentro de nós, então poderemos abordar a outra pessoa.

Irmã Dang Nghiem como você aborda uma irmã quando ela está com raiva de você? Como você pratica o Começar de Novo com ela? Depois de você limpar a esponja, o que você faz?

Irmã Dang Nghiem: Bem, na verdade a situação não aconteceu muito tempo atrás. Uma irmã veio até mim e enquanto estávamos passando uma pela outra, ela me deu um bilhete. Ela e eu temos sido realmente próximas porque fomos aspirantes juntas. Chegamos como jovens leigas, praticamos juntas e então nos ordenamos na mesma época. Portanto somos irmãs na mesma família.

Recentemente houve algo que fez que nos estranhássemos. Seu bilhete dizia algo assim: “Estou pronta, se você estiver pronta, para falar sobre sua raiva comigo.”(risos) Eu fiquei chocada quando li aquele bilhete! E então ela foi embora. No caminho de volta, eu estava em pé e disse algo para ela. Mas inicialmente, tenho que dar a você um pouco dos antecedentes ou isso poderá chocá-los!

Quando eu era jovem – minha avó foi quem criou meu irmão e eu – cada vez que eu tentava ser um pouco filosófica ou argumentativa, minha vovó apenas me olhava e dizia, “Você me faz querer defecar!” (risos) Isto efetivamente esvaziou meu ego.

Portanto quando minha irmã passou por mim uma segunda vez, eu disse: “Você me faz querer defecar! (risos) É fala amorosa entre nós. Ela disse: “Defecar, portanto você está desbloqueada! (risos). Quando ela disse isso, eu apenas levantei seu chapéu e beijei sua bochecha. Então ela se foi.

Aquilo realmente me deixou feliz naquele momento. Podemos apenas ser patetas juntos novamente. Ao passar do dia, eu pensei, “agora eu posso ir e falar com ela.” E então me veio: “Não eu não quero falar com ela, vou deixá-la sofrer!” (risos) Eu apenas não queria ir falar com ela.

Mesmo que nos nossos preceitos como monges e monjas não devêssemos guardar raiva por mais de 24 horas, eu queria que ela esperasse alguns dias! Mas profundamente dentro de mim, eu estava limpando minha esponja. Eu sempre faço meu melhor porque sei que sou muito inabilidosa. Eu estava consciente que queria vingança, mas ao mesmo tempo estava apenas sorrindo porque sentia muito amor pela minha irmã. Era apenas uma questão de tempo até que nos falássemos.

Quando fizemos o Começar de Novo era lua cheia, ela sentou e eu falei para ela. Eu disse: “Na verdade, não estou com raiva de você. Não é raiva o que você sente vindo de mim, mas ferimento. Quando você compartilhou daquele jeito, me tomou de surpresa. Eu pensei que nos conhecíamos, e agora eu ouço que você não pode falar comigo. Eu sinto que você não me entende, e isso me fere demais.”

Ela apenas ouviu e eu fiz o meu melhor para não acusá-la de nenhuma maneira, mas explicar como eu me sentia. Eu também expliquei como contribuí para a situação. Porque admito que havia vezes que ela tentou me dar conselhos e eu não queria ouvir. Foi por isso que chegamos ao ponto onde ela sentiu que eu não a ouvia e ela não podia falar para mim.

No final ela disse: “Agora eu não quero dizer nada, mas me faz ficar mais leve te ouvir.” Fizemos a meditação do abraço e eu disse: “Por favor, perdoe minhas limitações.” Ela disse: “Não se preocupe sobre isso.” Nós fomos embora nos sentindo muito mais felizes.

O interessante é que a estranheza continuou. Começar de Novo não é um tipo de mágica. Às vezes funciona e a situação é resolvida, mas para mim é um processo contínuo. Voltamos para a esponja que tem que se limpar sozinha. Profundamente dentro de nós há ainda pensamentos e visões, má vontade, ressentimentos ou o que quer que seja. Quando fazemos o Começar de Novo, isso é resolvido em certo nível, mas os níveis mais profundos ainda estão lá. Enquanto a estranheza entre nós ainda estava lá, eu sabia profundamente em mim que ainda havia outras questões, como deveriam haver dentro dela. É preciso muita paciência e amor.

Vejo que confiamos uma na outra porque queremos fazer o compromisso de viver em conjunto como companheiras, como pais e filhos, ou irmãos e irmãs. Queremos que nossa relação seja saudável, seja bonita, mas ao mesmo tempo percebemos que é um processo contínuo, e é muito difícil. A melhor coisa que podemos oferecer uns aos outros é a nossa prática. Tomamos a responsabilidade pela nossa esponja, e nos damos o espaço e o tempo para constantemente nos limparmos. Também damos a outra pessoa tempo e espaço para fazer isso, porque se nos pressionarmos ou à outra pessoa quando não estamos prontos para o Começar de Novo, para compartilhar ou ir a um nível mais profundo, então fica esquisito e não natural e pode causar mais estrago. É realmente um processo que é como uma dança e temos que aprender a ser sensíveis a isso. Gostaria que meu irmão compartilhasse um pouco sobre o processo de Começar de Novo.(...)

Irmão Phap An: (...) A chave da prática do Começar de Novo é retornar e tocar o amor profundo dentro de você. Quando temos uma relação – conosco mesmos, com nosso ambiente, com um companheiro ou um amigo – o abordamos com esse amor. Quando você vem a um retiro pela primeira vez, você tem esse primeiro amor. Então você vem uma segunda vez, as coisas se tornam mais familiares e de alguma forma este primeiro amor começa a se deteriorar um pouco, porque usamos nossa experiência anterior para responder à nova situação. Esta é a nossa tendência humana. Somos como uma máquina e tendemos a agir dessa maneira.

O Começar de Novo é para acender, para voltar ao primeiro amor que está dentro de nós. Eu acredito que em cada relação há este primeiro amor. O primeiro momento que você toca a terra e dá aquele primeiro passo na meditação caminhando, este é o seu primeiro amor. Se você pratica por algum tempo e não obtém felicidade dessa prática, não obtém alegria dela, então aquele amor está começando a deteriorar.

Quando a relação se torna menos nutritiva, menos alegre, então este primeiro amor está sendo destruído. Começar de Novo serve para voltar e tocar aquele amor uma vez mais. Na linguagem da minha irmã, serve para limpar nossa esponja, limpar esta esponja de forma que o primeiro amor se revele novamente.

(Conversa de Dharma dada por Irmã Dang Nghiem e Irmão Phap An em retiro em Nova Iorque no dia 15 de agosto de 2007 Casey – publicado na revista Mindfulness Bell n. 47)
(Transcrito por Greg Sever, editado por Janelle Combelic e Bárbara)

domingo, 16 de outubro de 2011

Qual é o seu verdadeiro nome?


Quando eu fui exilado na França, aprendi com uma garota de 11 anos que escapava do Vietnã com sua família e outros do “povo do barco” (boat people). Ela foi estuprada por um pirata, bem no seu barco. Seu pai tentou intervir, mas o pirata o jogou no mar. Depois de ser estuprada, ela se jogou no mar e se suicidou. Nós recebemos a notícia deste evento no escritório da nossa Associação Budista em Paris. Eu fiquei tão aborrecido que não conseguia dormir. Eu senti raiva, culpa e desespero.

Naquela noite na meditação sentada, me vi nascendo como um bebê em uma família de pescadores muito pobres na costa da Tailândia. Meu pai era pescador. Ela não sabia ler, e nunca foi ao templo; nunca recebeu nenhum ensinamento budista ou outro tipo de educação. Os políticos, educadores e assistentes sociais na Tailândia nunca ajudaram meu pai. Minha mãe também era analfabeta e não sabia como criar os filhos. A família do meu pai sempre foi de pescadores pobres há muitas gerações – meu avô e meu bisavô também foram pescadores. E quando eu fiz 13 anos, me tornei também um pescador. Nunca fui a escola e nunca ouvi os ensinamentos do Buda. Nunca me senti amado ou entendido, e vivi na pobreza crônica que passou de uma geração para a seguinte.

Então um dia outro pescador jovem me disse: “Vamos para o oceano. Há pessoas do “povo do barco” que passam perto daqui e eles frequentemente carregam jóias e ouro, às vezes até dinheiro. Apenas uma viagem e podemos nos libertar da pobreza.” Eu aceitei o convite. Pensei: “precisamos apenas levar um pouco das jóias, não fará nenhum mal e então nos libertaremos da pobreza.” Assim me tornei um pirata. A primeira vez que saímos e nem sabia que tinha me tornado um pirata. Mas uma vez no oceano, eu vi outros piratas estuprando meninas nos barcos. Eu nunca havia tocado numa menina, nunca nem havia segurado as mãos ou saído com uma. Mas no barco havia uma menina muito bonita e não havia policiais para me proibir. Eu via outros fazendo isso e me perguntei: “Porque não deveria provar também? Pode ser minha chance de experimentar o corpo de uma menina.” Portanto eu fiz.

Se você estivesse no barco e tivesse uma arma, poderia atirar em mim, mas isso não me ajudaria. Ninguém me ensinou como amar, como entender, como ver o sofrimento dos outros. Meu pai e minha mão também não foram ensinados. Eu não sei o que é saudável e o que não é, eu não entendo causa e efeito. Eu estava vivendo na escuridão. Se você tivesse uma arma, poderia atirar em mim e eu morreria. Mas você não seria absolutamente capaz de me ajudar.

Enquanto eu continuava sentado, vi centenas de bebês nascendo naquela noite na costa da Tailândia sob as mesmas condições, muitos deles meninos. Se os políticos e ministros da Cultura pudessem olhar em profundidade, veriam que em vinte anos aqueles bebês se tornariam piratas. Quando eu pude ver isso, entendi os atos do pirata. Quando me coloquei na situação de nascer em uma família sem instrução e pobre, por gerações, vi que não poderia evitar me tornar um pirata. Quando vi isso, meu ódio desapareceu e eu pude sentir amor pelo pirata.

Quando vi aqueles bebês nascendo e crescendo sem ajuda, sabia que tinha que fazer algo de forma que eles não se tornassem piratas. A energia do bodisatva, um ser compassivo com amor sem limites, cresceu dentro de mim. Eu não sofria mais. Eu podia abraçar não apenas a menina de 11 anos que havia sido raptada, mas também o pirata.

Quando você se dirige a mim como “Venerável Nhat Hanh”, eu digo “Sim”. Quando você chama o nome da menina que foi estuprada eu também digo “Sim”. E se você chamar o nome do pirata, também direi, “Sim”. Se eu tivesse nascido naquela área sob aquelas circunstâncias, eu poderia ter sido a menina ou o pirata.

Eu sou a criança do Congo, todo pele e osso, com minhas duas pernas finas como bambu. E sou também o mercador de armas, vendendo armas mortais para o Congo. Aquelas crianças pobres no Congo não precisam de bombas; precisam de comida. Mas aqui nos Estados Unidos, eu vivo de produzir armas e bombas. Se nós queremos que outros queiram armas e bombas então temos que produzir guerras. Se você chamar o nome da criança do Congo, eu digo “Sim”. Se você chamar o nome daqueles que produzem bombas e armas, eu também digo “Sim”. Quando sou capaz de ver que sou todas essas pessoas, meu ódio não está mais presente, e eu fico determinado a viver de forma que possa ajudar as vítimas, e possa ajudar aqueles que criam guerra e destruição.

Se não tivermos achado nosso verdadeiro lar será difícil ter um nome verdadeiro. Nosso nome deveria nos dar um sentimento de estar em casa. A sociedade pode nos rotular como franceses ou americanos, ou talvez nos chamar de afro-americano, quer nos sintamos em casa com o nome ou não. Às vezes não estamos confortáveis com nossa cultura, sociedade, igreja e não nos sentimos no nosso lar. Portanto o nome que os outros nos dão não é nosso verdadeiro nome. Mas não podemos achar nosso verdadeiro nome a não ser que tenhamos um lar verdadeiro.

Além de perguntar sobre nosso verdadeiro lar e nosso verdadeiro nome, podemos também perguntar, “Eu tenho uma verdadeira cor?” Isto também é muito difícil. Às vezes não estamos confortáveis com nossa cor, seja negro, mulato, amarelo ou branco. Podemos ter vergonha da nossa cor por que no passado nossos ancestrais podem ter feito coisas que não temos orgulho. Portanto, mesmo que você tenha uma pele branca, pode não gostar dela. Você pode não gostar de ser chamado de branco.

Todos devemos ter uma verdadeira cor que seja livre desses tipos de sentimento, desses tipos de complexos. Portanto em termos de geografia, de raça, de cultura, estamos confusos e não sabemos quem somos ou onde nosso verdadeiro lar está. A felicidade verdadeira não pode ser achada a não ser que achemos nosso verdadeiro lar. Para achar nosso verdadeiro lar temos que nos aceitar como somos.

O Buda viveu em uma sociedade que era muito dividida pelo sistema de castas. Os brâmanes, a casta dos padres, se acreditam superiores. Havia também aqueles fora das castas que viviam na base da sociedade. O Buda sempre falava sobre o sistema de castas, e falava de nobreza em termos de pensamentos, palavras e ações e não em termos de ancestrais ou raça. Nos ensinamentos do Buda, é muito claro que o que determina o valor de uma pessoa não é sua raça ou casta, mas seus pensamentos palavras e ações.

Não somos nobres por causa da nossa raça, mas pelo nosso modo de pensar, nosso modo de agir e nosso modo de falar. Há muitos que acreditam que são nobres, mas cujas vidas absolutamente não são nobres. Seu modo de pensar, falar e agir é ignóbil, portanto não há nada neles que possa ser chamado de nobre. Há pessoas, não importando o grupo étnico ao qual pertençam, cujo modo de pensar é cheio de entendimento, compaixão e irmandade, cuja maneira de falar é cheia de esperança e confiança, e cujo modo de agir é cheio de compaixão. É fácil ver a nobreza neles.

De acordo com os ensinamentos do Buda, todos têm a semente da equanimidade e da não discriminação dentro de si. Se formos capazes de tocar esta semente dentro de nós, a sabedoria da não discriminação se manifestará, e não sofreremos ou faremos outros sofrerem.

Vamos olhar para nosso corpo para outro exemplo. Chamamos uma mão de mão esquerda e a outra de mão direita. Elas são distintas e não fazemos confusão entre elas. Minha mão direita escreveu quase todos os meus poemas. (...) Ainda assim minha mão direita nunca teve complexo de superioridade. Minha mão direita não pensa ou diz coisas como: ”Mão esquerda, você sabe que eu escrevi quase todos os poemas? Você sabe que eu posso fazer caligrafia? Eu posso convidar o som do sino? E você, mão esquerda, não parece ser boa para nada!” Minha mão direita nunca pensa deste modo, nunca tem essa atitude. Minha mão direita nunca é capturada por um complexo de superioridade. Um complexo de superioridade nos faz sofrer. Não é apenas quando temos baixa auto-estima que sofremos, mas quando temos alta auto-estima – o sentimento que somos mais poderosos, mais talentosos, mais importantes – também sofremos.

Embora minha mão esquerda não tenha escrito poemas ou feito caligrafia, não sofre de nenhum complexo de inferioridade. É maravilhoso. Ela não sofre absolutamente. Não há comparação, não há baixa auto-estima. É por isso que minha mão esquerda é perfeitamente feliz.

Um dia eu estava tentando pendurar um quadro na parede. Minha mão esquerda estava segurando um prego e minha mão direita um martelo. Neste dia, não sei por que, ao invés de bater no prego, eu bati no meu dedo. Quando acertei o meu dedo, minha mão esquerda sofreu. Imediatamente a mão direita largou o martelo e tomou conta da mão esquerda do modo mais carinhoso, como se estivesse tomando conta de si mesma. Ela não via isso como sua obrigação. Este tipo de coisa aconteceu muito naturalmente; minha mão direita faz coisas para minha mão esquerda como se tivesse fazendo para si mesma.

O psicólogo Fritz Perls escreveu um poema que dizia: “Você é você, e eu sou eu, e se por acaso nos encontrarmos, será bonito. Senão, não poderemos ser ajudados.” Eu discordo do sentimento por trás desse poema. Minha mão direita não diz: “Eu sou eu e você é você, nós somos mãos diferentes.” Não há esse tipo de pensamento. Minhas duas mãos praticam perfeitamente o ensinamento do Buda de que não há eu separado.

Minha mão direita considera o sofrimento da mão esquerda como seu próprio sofrimento. É por isso que fez tudo para tomar conta da mão esquerda. Minha mão esquerda não estava com raiva. Ela não disse: “Você, mão direita, me fez injustiça. Dê-me o martelo. Eu quero justiça!” Ela não tinha tais pensamentos. Isto confirma que há uma inerente sabedoria na minha mão esquerda, a sabedoria da não discriminação. Quando temos essa sabedoria, absolutamente não temos que sofrer. A sabedoria da não discriminação em sânscrito é nirvikalpajñana. Vikalpa é discriminação, nirvikalpa e não discriminação e jñana significa sabedoria. Esta sabedoria é inata em todos nós.

(Do livro “Together we are one”– Thich Nhat Hanh)
(Traduzido por Leonardo Dobbin)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Personificação da Paz


Ontem foi o aniversário de Thich Nhat Hanh, ou como chamamos carinhosamente, Thay (Mestre). Que o jardim por ele semeado possa nascer e florescer no coração de cada ser humano e que sejamos a personificação da paz. Este é o nosso presente.
Segue abaixo um texo sobre a vida e feitos de Thich Nhat Hanh:

Thich Nhat Hanh (Nguyễn Xuân Bảo, Vietnã, 1926) é um monge budista, pacifista e escritor vietnamita.

Um dos mestres zen-budistas mais conhecidos e respeitados no mundo de hoje, poeta e ativista da paz e dos direitos humanos. Nascido na região central do Vietnã, ele se juntou aos monges na idade de dezesseis anos. Por ocasião da Guerra do Vietnã, os mosteiros se defrontaram com a questão de aderir ou não, exclusivamente, à vida contemplativa e continuar a meditar nos mosteiros, ou ajudar a população que sofria sob bombardeios e outras devastações da guerra. Nhat Hanh foi um dos que optaram por fazer as duas coisas, ajudando a fundar o movimento do "budismo engajado". Desde então, tem dedicado sua vida ao trabalho de transformação interior para o benefício dos indivíduos e da sociedade.

Em Saigon, no início dos anos 60, Thich Nhat Hanh fundou a Escola de Serviço Social da Juventude, uma organização de apoio popular que passou a se dedicar à reconstrução de aldeias bombardeadas, criação de escolas e centros médicos, reassentamento de famílias desabrigadas, e organizando as cooperativas agrícolas. Reunindo cerca de 10.000 estudantes voluntários, a organização baseou o seu trabalho nos princípios budistas da não-violência e ação compassiva. Apesar da denúncia do governo de sua atividade, Nhat Hanh também fundou uma universidade budista, uma editora e uma revista influente ativista da paz no Vietnã.

Depois de visitar os EUA e a Europa, em 1966, em missão de paz, ele foi proibido de retornar ao Vietnã. Em viagens posteriores para os EUA, elaborou um processo de paz para as autoridades federais e do Pentágono, incluindo Robert McNamara. Ele pode ter mudado o curso da história dos EUA, quando persuadiu Martin Luther King a se opor publicamente à Guerra do Vietnã, sendo que isso ajudou a galvanizar o movimento pela paz. No ano seguinte, Luther King indicou-o para o Prêmio Nobel da Paz. Posteriormente, Nhat Hanh chefiou a delegação budista nas Conversações de Paz de Paris.

Em 1982, no exílio na França, fundou Plum Village, uma comunidade budista, onde continua seu trabalho para aliviar o sofrimento dos refugiados, os presos políticos e famílias famintas no Vietnã e em todo o Terceiro Mundo. Também recebeu o reconhecimento por seu trabalho com os veteranos do Vietnã, retiros de meditação, e seus escritos sobre a meditação, atenção e paz. Já foram publicados cerca de 85 títulos de sua obra, tais como poemas, prosa e orações, com mais de 40 títulos em Inglês. Em setembro de 2001, poucos dias após os atentados suicidas terroristas ao World Trade Center, ele abordou as questões da não-violência e do perdão, em um discurso memorável na Igreja de Riverside, em Nova York.

Thich Nhat Hanh continua a viver em Plum Village na comunidade de meditação fundada por ele, onde ensina, escreve e conduz retiros em todo o mundo sobre "a arte de viver consciente." Um dos principais ensinamentos de Thich Nhat Hanh é que, através da plena consciência, podemos aprender a viver no momento presente, em vez de nos apegarmos ao passado ou futuro. Residindo no momento presente é, de acordo com Nhat Hanh, a única maneira de realmente desenvolver a paz, em si mesmo e no mundo.

A pronúncia do nome de Thich Nhat Hanh, em Inglês é: Tik N'yat Hawn, contudo, desde que o idioma vietnamita é uma língua tonal, isto é apenas uma aproximação estreita de como se iria pronunciar em vietnamita. (O nome dele é, por vezes, é escrito com erros ortográficos como Thich Nhat Hahn, Thich Nhat Han, e Thich Nat Han.).

domingo, 9 de outubro de 2011

Meditação e Cura


A meditação (chamada dhyana em sânscrito e zen em japonês) é o cerne da prática budista. O objetivo da meditação é ajudar o praticante a chegar a uma compreensão profunda da realidade. Esta introspecção tem a capacidade de libertar-nos do medo, da ansiedade e da depressão. Pode produzir compreensão e compaixão, pode elevar a qualidade de vida e trazer liberdade, paz e alegria para nós mesmos e para as pessoas ao nosso redor.

Sobretudo na última parte do século XX, as pessoas do Ocidente começaram a voltar sua atenção para a meditação. O conforto material do Ocidente não é suficiente para trazer felicidade. Nossas mágoas, nossas preocupações e nossos problemas só podem ser resolvidos mediante uma vida espiritual. O budismo e a prática da meditação estão indicando atualmente a um maior número de pessoas um caminho para responder a estas dificuldades.

A meditação sentada é a forma mais comum de meditação, mas também podemos praticá-la em outras posições como caminhando, em pé ou deitados. Quando lavamos roupa, cortamos lenha, regamos as plantas ou dirigimos o carro - onde quer que estejamos, o que quer que façamos, seja qual for a posição de nosso corpo, se as energias da mente alerta, da concentração e da introspecção estiverem presentes em nossa mente, em nosso corpo, então estamos praticando a meditação. Não precisamos ir a um templo, a uma igreja ou a um centro de meditação para meditar. Viver em sociedade, ir ao trabalho todo dia, cuidar de nossa família também são oportunidades de praticarmos a meditação. A meditação tem o efeito de nutrir e curar o corpo e a mente. E devolve ao praticante e às pessoas que o cercam a alegria de viver. (...)

A meditação é especialmente indicada para nos ajudar naquilo que o budismo chama de nós interiores e de complexos de identidade. Esses grilhões nos impedem de estar conscientes no momento atual.

Os nós interiores são um conjunto de ilusões, repressões, medos e ansiedades que se fixaram nas profundezas de nossa consciência. Eles são capazes de nos constranger e nos levar a fazer, dizer e pensar coisas que na realidade não queremos fazer, dizer ou pensar. Os nós interiores são plantados e alimentados por nossa ausência da mente alerta durante a vida de todo dia. Os dez nós interiores principais são: ganância, ódio, ignorância, vaidade, desconfiança, fixação no corpo como se fosse o eu, pontos de vista extremados e preconceitos, apego a ritos e rituais, ânsia de imortalidade, desejo ardente de manter as coisas exatamente como são. Nossa saúde e nossa felicidade dependem em grande parte de nossa habilidade de transformar esses dez grilhões.

A mente alerta tem a capacidade de reconhecer os nós interiores quando eles aparecem em nossa consciência. Esses nós interiores se formaram no passado, às vezes foram energias habituais a nós transmitidas por nossos pais e avós. Não precisamos voltar ao passado e cavar nas lembranças, como se faz na psicologia, para descobrir as raízes dessas partes turvas e emaranhadas de nossa mente. A energia da mente alerta é capaz de reconhecer as formações interiores quando elas se manifestam e olhar profundamente para dentro delas, de modo que podemos ver as raízes desses nós emaranhados.

A prática da meditação nos ajuda a ver a interconexão e a interdependência de tudo o que existe. Não há fenômeno, seja ele humano ou material, que possa aparecer por si só e durar por si só. O fato é que uma coisa depende da outra para surgir e durar. Esta é a introspecção da interdependência, às vezes chamada também de inter-ser ou não-eu. Não-eu significa que não há uma entidade permanente separada. Todas as coisas estão em constante mutação. Pai e filho, por exemplo, não são duas realidades separadas. O pai existe no filho, e o filho existe no pai. O filho é a continuação do pai no futuro, e o pai é a continuação do filho no passado da fonte. A felicidade do filho está ligada à felicidade do pai. Se o pai não é feliz, a felicidade do filho não pode ser perfeita. A natureza de todas as coisas é não-eu. Não' há um eu separado e independente.
(Do livro “A energia da oração” – Thich Nhat Hanh)